"Ao largo as águas brilham como prata"
Tudo começa com um ideia tola de alguém inspirado, depois essa ideia volta à conversa num jantar de amigos ou numa volta de bike; mais tarde começam a aparecer datas. É nessa altura que tudo começa a ficar realmente perigoso, como um barco sem remos num rio apressado! Data definida e uma dupla de tolos começa a perceber que vai mesmo haver aventura e dois sentimentos invadem os seus espíritos: um igual ao que uma criança sente na véspera de uma excursão da escola ou da ida para férias outro de preocupação pelo tamanho do desafio. Desta vez haveria que treinar as pernas mas sobretudo o rabo pois seriam cerca de 16 horas sentado em cima do selim! Foi o que fizemos, às vezes juntos de bike outras vezes cada um por si. No último treino a dois e já bastante próximo do dia 18, sentimos que esta não era igual às outras aventuras: havia o desafio físico e mental mas havia sobretudo o desafio histórico de "descobrir novos mundos" numa interpretação só nossa: de Bicicleta de Todo o Terreno (BTT) e num só dia!
O que é possível "Descobrir" num só dia, numa BTT?
Os últimos diálogos entre os dois começavam a ser demasiado previsíveis. Quando um lançava mais uma das ideias tolas já o outro estava com ela na cabeça. Foi assim que, numa das voltas treino, a chegar à barragem de Montargil começo a falar de Portugal, um rectângulo, e de Abrantes, o encontro das suas diagonais. Assim em vez do foco no desafio de ligar Abrantes a Sagres, criou-se um conjunto de desafios que era o de unir Abrantes aos 4 vértices do rectângulo em 4 aventuras de um só dia. Mas a este conjunto de 4 aventuras deveríamos acrescentar uma espacial, uma que fosse praticamente impossível de concretizar, uma onde todos os limites fossem redefinidos...
Será possível chegar a Madrid saindo de Abrantes de BTT num só dia?
São agora cinco ultra-desafios a sair de Abrantes e a chegar o mais longe possível em Portugal e, por último, à capital de Espanha, Madrid. Contei os nossos propósitos à Sr.ª Presidente da Câmara, Maria do Céu Albuquerque numa conversa informal à porta do Teatro São Pedro, em Abrantes, e de pronto confirmou a sua presença na partida da "#1 Abrantes-Sagres, by bike".
Chegámos ao Aquapólis sul cerca das 22h30m conforme combinado, para um BinTTage de honra. Queríamos que lá estivessem os BinTTage's, os amigos de outras aventuras e a nossa Presidente. Precisávamos de juntar às nossas forças a força deles. Depois dos registos fotográficos, brindamos com Mythos do Casal da Coelheira, Trajadura da Corga da Chã e um raríssimo Porto de 86 da Quinta das Lages. Recebemos cumprimentos e palavras encorajadoras.
A primeira pedalada foi às 00h01m do dia 18 de julho de 2014.
"A lua já desceu sobre esta paz", a partida foi emocionante. O vigor era de sobra, talvez fosse do vinho que bebemos e que simultaneamente tornava mais espessa a nossa saliva. A estrada era perigosa sobretudo até ao cruzamento para os Foros do Arrão, depois mais tranquila! Pedalamos uns bons minutos ao luar, para poupar as baterias mas também para experimentar sensações de harmonia com a Natureza. Chegamos rapidamente a Montargil, seguimos em direção ao Couço. Atestámos água como previsto, numa torneira exterior existente no parque de estacionamento do restaurante "Sabores de Coruche" identificada no último grande treino mas estava quente. Os primeiros 100 kms estavam feitos com boas sensações e média superior ao previsto. Os próximos 100 seriam percorridos em estradas muito perigosas e portanto havia que despachar aquilo rápido. Talvez por pensar assim, a chegada à Comporta fosse bastante penosa. Algum cansaço e sono juntamente com uma má disposição geral (talvez da água) foram as sensações do momento. Escolhemos uma estação de serviço para o café matinal e substituir a água dos cantis. Entretanto telefono para os BinTTage: Bairrão, Francisco, Paula , Elsa e António, que tinham saído de Abrantes às 6 da manhã e que nos iriam encontrar às 8 na Comporta. Estávamos a uns escassos 500 metros uns dos outros. O encontro foi maravilhoso e o pequeno almoço que o incansável Bairrão tinha preparado era precisamente o que necessitávamos. Sumos, sandes de pão fresco com queijo e presunto e tigeladas para a sobremesa. Voltamos a perder o sono e revigorados pedalamos para ver o mar assim que possível.
A velocidade média voltou a subir e o entusiasmo também. A paisagem era realmente bonita e diversa: sobreiros, vinhas, pinhais e dunas iluminadas pelo Sol num Céu quase limpo. A brisa era fresca.
"Por trás de mim o bafo do destino; devolve-me à lembrança do Alentejo". Primeiro Sines, e os contrastes entre a Natureza e o Homem, praias lindas com a central do outro lado da rua. A estrada que liga Sines a Porto Covo é uma das razões que nos levou a escolher a BTT. Seria difícil pedalar ali numa fininha! Estrada fraca mas praias lindas e quase desertas, um tesouro.
A música que cantarolava entre os suspiros da respiração, às vezes ofegante, tinha outro sentido "aqui, no lugar de Porto Côvo". A dupla Rui Veloso/Carlos Tê faz músicas/letras que me emocionam e esta era uma delas. "Ao largo as águas brilham como prata; e a brisa vai contando velhas lendas; de portos e baías de piratas". O almoço idealizado pelo Daniel seria pizza! Estranha escolha que resulta de leituras antigas de "O Homem da Ultra-Maratona" do Dean Karnazes e de uma sugestão insistente de um amigo. Para não perder muito tempo, como habitualmente, o Daniel planeou tudo ao milímetro. Elas deveriam estar prontas assim que chegássemos e a Antoinette, uma simpática holandesa, dona da pizzaria, foi de uma simpatia invulgar e surpreendente. Abriu o restaurante antes da hora prevista, estava à porta para nos receber e no final ofereceu-nos a pizzas. Os seus empregados, igualmente simpáticos, não deixavam que nos faltasse nada. Foi com um grande abraço e a promessa de voltar que nos despedimos emocionadamente de "La Bella Vita". Agora a comitiva estava quase toda junta com a chegada da Paula, Joana e Carolina no carro do Nuno Estrada. O almoço dos restantes BinTTage's foi de escolha mais óbvia, comeram as sardinhas "enquanto um sargo assa no braseiro" do Zé Inácio.
"Havia um pessegueiro na ilha; plantado por um Vizir de Odemira; que dizem que por amor se matou novo". Pedimos para nos fotografarem à saída de Porto Covo e em frente à Ilha do Pessegueiro. Vila Nova de Milfontes "devolve-me à lembrança o Alentejo" e as férias com os amigos da faculdade. Mais uma paragem para foto na ponte sobre o rio Mira.
Custou chegar à Zambujeira, acho que comi demasiado ao almoço... tenho a sensação de ter dormido a pedalar em alguns instantes. Não consegui apreciar esta parte do percurso mas recordo a paisagem amarela e seca, o Z-Mar e a passagem pelos sugestivos restaurantes junto ao porto de pesca. O banho de mar estava quase a chegar, numa das praias mais bonitas e igualmente de boas memórias. Foi revigorante e voltamos a encontrar toda a comitiva que vinha deliciada com as sardinhas do almoço. Bebemos Sagres antevendo a Meta que estava perto mas demorada. Depois desta paragem já não havia nenhum estímulo intermédio. Os olhos estavam agora no Cabo de São Vicente, em Sagres.
Subidas e descidas alternavam e nós também a puxar um pelo outro. Trocávamos histórias de outros tempos e fazíamos previsões de chegada. O Daniel conhecia esta parte final e dava algumas indicações preciosas. Lembro-me de ter dito que faltavam apenas duas subidas mas consegui contar mais de meia dúzia! Uma última paragem para hidratar num bar/restaurante com bom aspeto obrigou a perguntar antes quanto custava um cola pois só havia 6€ para gastar... Deu para duas, primeiro, mais duas, a seguir. Acompanhamos com os nossos restos de comida. Já só queríamos chegar e estar com os nossos amigos. Tomar banho e jantar a sério.
E foi quase assim... eles não estavam na Meta, tinham ido ao Hotel, entretanto, e subavaliaram as nossas capacidades!
Chegar ao fim de uma enorme aventura deixa-me sempre um pouco vazio, estranhamente é apenas mais um momento. Acho que preciso de uns instantes para absorver tudo e voltar à realidade.
"Olhando à minha frente o azul escuro; podia ser um peixe na maré; nadando sem passado nem futuro"
Entretanto chegaram os BinTTage's, já com a Margarida e o Nuno Aparício vindos por Lisboa, e com eles palavras simpáticas, reconfortantes e mais fotos. E o abraço inigualável do António.
O banho custou 5,90€ a cada um no parque de campismo de Sagres e o jantar foi no restaurante "O Carlos". Curiosamente, ou não, na mesa ao lado jantava Carlos Tê, o senhor que escreveu o que está entre aspas neste texto, com os seu dois filhos! Massada de peixe e feijoada de chocos foram um belo recovery e uma aguardente de medronho adiantou uma morte já anunciada. Dormi duas noites numa só em apenas sete horas!
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